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sábado, 30 de janeiro de 2010

Crônica - "Coração Distante" de Russel da Silva Ribeiro

Célia era a riquinha do bairro pobre. O amplo jardim, bem cuidado, com palmeirinhas, rosas, flores e gramado, antecipavam o jardim de inverno que mal dava para se ver da rua. Lá da rua, nas tardes quentes, podia-se ouvir um piano com sons estudantís executando Fur Elise, de Beethoven ou Le Lac De Come, de G. Galos ou até mesmo o melancólico Noturno de F.Chopin. Uma questão de cultura. A família pertencia, na verdade, simplesmente á classe média. Célia, loirinha e robusta, era um tipo de passarinho na gaiola. Mesmo sem poder, estudava no Sacrée C’oeur du Marie, lá na Apeninos, enquanto a ralé se amontoava no ginásio estadual. Entretanto, sempre que podia, juntava-se à patota reunida na esquina. Ria e se divertia como todo mundo até que a voz estridente da mãe a chamasse para o cativeiro.

Como só o destino tem respostas para algumas coisas, apaixonou-se por Maurílio e ele por ela. O rapaz era nada menos que um negro atlético e sorridente, sorriso cativante, excelente companheiro, que cantava suave os sambas românticos da época. Morava numa casinha sem reboque, na baixada, perto do riozinho poluído. Quando os pais souberam do namoro, explodiram violentos e investiram contra os vagabundos da esquina. Ainda não havia drogas. Mesmo assim, uma viatura policial esparramou o pessoal amedrontado. Célia foi trancafiada as sete chaves. Sumiu por longo tempo. Tinha sido mandada para o Rio ou coisa que o valha. O samba da esquina acabou. A turma dispersou-se. Cresceu. Cada um tomou seu destino.

Anos depois, olha o Hélio nos corredores da USP. Recordações... Recordações...

- Lembra-se da Célia? Morreu há uns dois anos. Nem Maupassant teria tanta imaginação, hein?

Contou que, ferida de morte por um câncer que devorou-lhe os intestinos, nos últimos dias de vida, fez ao marido o último pedido: Queria ver Maurílio!

A busca envolveu toda a família. Levou dias. Horas preciosas. A espera mantinha a enferma viva. Foram o pai e o marido que entraram numa oficina mecânica para conversar com um negro gigantesco, macacão preto, unhas pretas de graxa. Rosto sério. A única emoção que transpareceu foi através dos olhos que se apertaram um pouquinho, pétreos. Se os dois fossem observadores, perceberiam que os olhos se adocicaram quando lhe falaram de Célia.

Sentou-se a beira do leito, tomou entre as enormes mãos as delicadas mãozinhas da enferma. Os dois nada disseram. Lágrimas silenciosas banharam ambos os rostos. Os parentes se afastaram, prudentemente. Murmúrios imperceptíveis. Anos se passaram em segundos. Maurílio reclinou-se sobre a enferma e depositou um singelo beijo nos lábios sem cor. Levantou-se e partiu, sem olhar para ninguém. Célia dormia em paz.

Há duas coisas sobre as quais nada podem as convenções humanas: o Amor e a Morte. A primeira é maior que a segunda. O Galileu, que sabia das coisas, afirmou que onde estiver o tesouro de um homem ai também estará o seu coração. Esse tesouro não significa, necessariamente, ouro ou prata. Pode ser uma crença, um ideal ou uma vocação. O mundo seria melhor se ninguém se coloca-se como uma pedra de tropeço para essas aspirações do espírito!

* Neste Blog terei a oportunidade de partilhar com os meus amigos lindas crônicas de um grande Mestre, Escritor, Professor, Músico e Cineasta entre tantos outros atributos, Russel da Silva Ribeiro.

Um comentário:

  1. Oi, achei muito legal a sua ideia de fazer um blog, espero que todos se beneficiem com a troca está bem no começo , mas percebe-se que já esta tomando forma.
    Parabéns! E fiquei envaidecido pela homenagem que você fez ao meu pai adicionando suas crônicas.
    Bjos

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